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2 de fevereiro de 2021

‘Caso GameStop’ deixa dúvidas sobre punição por possível manipulação

por CCHDC

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) emitiu um alerta, num texto discutido linha por linha internamente, dizendo que a atuação de investidores com o objetivo deliberado de influir no regular funcionamento do mercado “pode” caracterizar ilícitos administrativos e penais. Sem citar nomes, a autarquia respondia à tentativa de investidores brasileiros de se organizar em grupos para valorizar as ações IRB e pressionar investidores “vendidos” (que apostam na queda) a desfazer posições com perdas. Esse movimento, que no jargão do mercado chama “short squeeze”, foi feito, com impressionante sucesso, pelo varejo americano.

Mais de 2 milhões de pessoas, participantes de um fórum no site Reddit, combinaram de fazer operações para elevar a cotação da varejista de lojas físicas de jogos GameStop, que está em situação delicada na pandemia e por isso atraiu os “vendidos”. Graças ao alcance das redes, eles deixaram em situação difícil pelo menos um fundo.

A SEC manifestou mais preocupação com as perdas que o pequeno investidor pode vir a sofrer

No alerta, a CVM disse que o “squeeze”, que “pode” se configurar em situações nas quais um ou mais investidores provocam artificialmente a alta de preços para prejudicar ou auferir benefícios, é uma das modalidades de manipulação. O texto diz que, dependendo das características do caso, “tais estratégias” podem ser tipificadas como “manipulação de preços”, conforme a Instrução CVM 8.

“Eles tomaram o cuidado de dizer coisas como ‘pode configurar’. Em tese, concordo com eles. Pode ser que em casos concretos não seja exatamente assim. Haveria que olhar a conduta de cada investidor”, afirma Julian Chediak, sócio do Chediak advogados. O entendimento do especialista é que a lei, em tese, não permite que vários investidores combinem de atuar de forma coordenada com o único objetivo de alterar o preço de uma ação. É uma análise que passa pelo objetivo dessa atuação.

Há no mercado, por exemplo, situações em que grandes investidores combinam de comprar ações e juntar posições relevantes em empresas para conseguir uma cadeira no conselho e interferência direta na gestão. Mas, numa situação como essa, diz Chediak, o objetivo não é alterar o preço da ação artificialmente – a alteração é consequência das forças de mercado.

“Nesse tipo de ilícito, a intenção, que em Direito chamamos de dolo, é fundamental. Se há apenas a intenção de alterar o preço, com o objetivo de prejudicar alguém [o “squeeze”], há o que chamamos de dolo específico”, diz o Chediak.

Diante do ineditismo da situação, pois nunca se tinha visto tantos pequenos investidores com tanta força para intimidar os grandes, o episódio também gera debate nos Estados Unidos, para entender se o que aconteceu pode ser enquadrado como manipulação, pelas regras atuais.

Reportagem do “Financial Times” sugere que autoridades poderão ter dificuldades em relação a isso, além do desafio que seria processar milhares de investidores. O “FT” cita a análise de Joseph Grundfest, professor de Stanford e que já trabalhou na SEC, reguladora do mercado americano. Para ele, configuraria manipulação se alguém estivesse nesses fóruns recomendando a compra da GameStop e ao mesmo tempo vendendo as ações no mercado. Segundo a reportagem, o mais comum é enquadrar a manipulação em situações em que algum investidor foi de alguma maneira enganado ao negociar ações, por exemplo, com informações mentirosas sobre o desempenho da empresa. E no episódio não está claro se houve isso.

Segundo o “FT”, a SEC raramente apresenta casos de manipulação, que são muitos difíceis de provar – eles responderam por 5% do “enforcement” nos anos de 2019/2020.

Um especialista brasileiro, que prefere não se identificar, diz que, conforme a leitura das regras domésticas, há manipulação quando alguém é induzido a fazer algo sem saber exatamente o que está fazendo. Por exemplo, ele compra um papel “inflado” sem saber. “A coisa mais maluca é que nesses grupos as pessoas estão sendo convidadas a participar de um esquema, que é ilícito. Acredito que foi isso que a CVM tentou deixar claro no alerta”, diz.

A fúria do varejo americano é alimentada, segundo eles mesmos, pelo fato de, na pandemia, estarem com mais tempo em casa para estudar investimentos. E perceberam assim que podem investir sozinhos, via plataformas e aplicativos, sem precisar pagar taxas para os grandes gestores. Avaliam que os gestores usam termos difíceis e apontam dificuldades para fazer isso sozinho, mas na verdade querem preservar suas taxas de administração e até manipulam o varejo, inclusive ficando “vendidos”.

A questão é que a GameStop enfrenta dificuldades na pandemia. E não há nada que justifique ou vá sustentar uma valorização de 800% em poucos dias. No Brasil, o IRB foi uma empresa vítima de fraude contábil e que teve de republicar balanços com ajuste de R$ 1,3 bilhão. O novo presidente do ressegurador já afirmou que se a fraude não tivesse sido descoberta a tempo, a empresa não teria sobrevivido. O IRB sucumbiu após a gestora Squadra, “vendida” nas ações, questionar os resultados da empresa em um relatório, o que acabou detonando uma série de eventos que afastaram a diretoria anterior. A atividade de investidores “vendidos” nos EUA costuma ser atrelada à descoberta de fraudes, além da mera oportunidade de mercado.

O curioso no caso brasileiro é que outras empresas que geraram grupos, como Oi, Cogna e Via Varejo, são papéis frequentemente alvo de comentários favoráveis de “especialistas de Twitter”, muito acompanhados pelas pessoas físicas. Aparentemente a movimentação da rede gerou, em alguma medida, a demanda pelos papéis e sua alta, o que atraiu “vendidos”.

O que os especialistas destacam que foi feito pelo varejo americano difere do que faz um gestor “vendido”. “A Squadra identificou uma empresa que todo mundo achava ‘o máximo’ e era, na verdade, uma ‘furada’. Por meio de sua análise, ela descobriu um monte de problemas, que ninguém tinha visto. Quando um gestor fundamentalista faz esse tipo de exercício, pode até estar errado, mas faz a partir de uma análise de valor que acredita estar correta. Não tem ilicitude. Ele quer mostrar que o preço está errado a partir de um exercício de valor, fundamentado. Essas pessoas nos grupos estão querendo fazer o preço subir por subir, sem fundamentos”, diz um especialista.

Carlos Lobo, sócio do escritório Hughes Hubbard & Reed, diz que se as pessoas se reúnem em fóruns e discutem que tal empresa está indo bem por determinadas razões e isso gera um movimento de compra, está tudo certo. “Isso faz parte do jogo, alguém traz uma análise, chama a atenção de alguém para um dado ou notícia, por exemplo, é perfeitamente válido”, diz Lobo. “O que não pode acontecer e é manipulação é alguém dizer, olha, tem uma turma apostando contra o papel, vamos todos nos juntar para apostar a favor para atrapalhar a vida dele. A manipulação está no objetivo”, diz. Ele acrescenta ainda que as pessoas que estão nesses grupos estão sabendo que isso está acontecendo, mas há investidores de fora, que não sabem.

O advogado Raphael Martins, sócio do Faoro & Fucci, diz que problema é o efeito manada. “Não vejo novidade no desejo de mexer com o preço de ação. A questão do ambiente virtual é a escala, a proporção que isso alcançou. Antes era um pequeno grupo combinando, agora milhares de pessoas.”

E há um fator a mais trazido pela “força raivosa” das redes. Na sexta-feira, a Citron Research anunciou que depois de 20 anos vai encerrar a área de relatórios com recomendações de posições “vendidas”. A Citron e seu fundador, Andrew Left, estiveram no centro da GameStop após um relatório. Left se disse chocado com os ataques pessoais e ameaças recebidos por ele e seus filhos. Em vídeos no YouTube, disse que, em sua carreira, havia sido processado, questionado e sempre aceitou tudo isso, pois apoia opiniões contrárias. “Mas nunca levei para o pessoal. Nunca fui desagradável ou ameacei um executivo, sua família ou quaisquer acionistas”, disse.

Ao justificar porque divulgaria agora apenas recomendações de longo prazo, disse que criou a Citron para descobrir eventuais fraudes e proteger o pequeno investidor de Wall Street. Mas agora notou que a Citron, criada para ser contra o sistema, havia se tornado parte dele.

No Twitter, a Citron escreveu que a Casa Branca tem questões mais urgentes do que investigar fóruns no Reddit: “Somos uma nação baseada na liberdade de expressão e no capitalismo. A Citron luta globalmente há 20 anos por esse direito e nenhum fenômeno comercial deveria eliminá-lo”.

O mercado dos EUA tem menos regulação do que o brasileiro, o que ajudou a viabilizar a ação. O fundo hedge da Melvin estava 125% “vendido” em GameStop, e as regras da B3 limitam o aluguel de ações, que viabiliza essa operação, a 20% do capital em circulação.

A SEC, até o momento, manifestou mais preocupações com as perdas que o pequeno investidor vai sofrer quando a GameStop devolver a alta artificial dos últimos dias do que sinalizou que pode abrir processos por manipulação contra o pequeno investidor, que tem pouco poder no mercado.

Em 2014, a reguladora americana não se envolveu numa briga de “cachorro grande”. O investidor Bill Ackman fez uma posição “vendida” e questionou o negócio da Herbalife. Um rival dele, Carl Icahn, fez a posição oposta, “comprada”, para desafiá-lo. A situação se estendeu por cinco anos.

A SEC tem se mostrado mais atenta às plataformas e corretoras que não interferiram nas negociações acima do normal dos últimos dias. Nos EUA, as corretoras podem até mesmo financiar os investidores. Segundo o “FT”, a volatilidade da semana passada pode desencadear uma mudança nas regras das plataformas, escritas antes das negociações gratuitas e do uso generalizado da Internet. “Vimos o que houve no Capitólio, quando as redes sociais chegaram lá. Agora estamos vendo o que acontece quando chegam ao mercado. Os reguladores terão de responder”, diz Jill Fisch, da Universidade da Pensilvânia.

 

Fonte: Valor Econômico

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