A Mudança de Posicionamento da CVM sobre Conflito de Interesse Material e Formal nas Assembleias Gerais de Acionistas
por CCHDCUm tema recorrente no Direito Societário e nas assembleias gerais das sociedades empresariais refere-se à verificação da existência de conflito de interesses de determinado sócio ou acionista em determinada matéria sujeita à deliberação societária e seu consequente impedimento de voto. Este controverso tema é objeto de análises e correntes doutrinárias diversas, de modo que a própria Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) já chegou a se posicionar em vários momentos em polos opostos da discussão, conforme o caso em questão.
O conflito de interesses é expressamente disciplinado pela Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.”), em seu artigo 115, §1º. Referido diploma legal dispõe que os acionistas das sociedades por ações não podem votar nas deliberações da assembleia geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras matérias que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou nas quais o acionista tiver interesse conflitante com o da companhia.
Nesse sentido, a partir da análise interpretativa do artigo supra, a doutrina brasileira dividia-se em duas correntes referente a matéria do conflito de interesses do acionista, calcado principalmente quando referido conflito se verifica e gera um impeditivo no voto: a teoria do conflito de interesses formal e a teoria do conflito de interesses material.
De um lado, os defensores da teoria do conflito de interesses formal, mediante análise restritiva e literal do artigo 115, §1º, da Lei das S.A., entendem que a situação de conflito se manifestamente previamente à sua efetiva concretização, de modo que o acionista cujo interesse seja conflitante com o da companhia deverá ser impedido de votar na deliberação cujo interesse particular possa prevalecer a seu interesse como acionista. Para esta corrente doutrinária, portanto, a existência de uma situação de conflito de interesses enseja o impedimento de voto na própria assembleia geral na qual a pauta será deliberada, de modo que o voto de referido acionista não será computado para a formação do quórum aplicável.
Em polo oposto da discussão, os doutrinadores que entendem que ser correta a teoria do conflito de interesses material baseia-se em uma interpretação extensiva e sistemática da Lei das S.A., por meio da qual o conflito de interesses somente será efetivamente concretizado posteriormente ao voto a ser proferido pelo acionista conflitado. Em termos práticos, o este poderá votar como bem entender na assembleia geral em questão e, caso seja apurado que o voto foi proferido com interesse pessoal em detrimento do melhor interesse da companhia, o voto do acionista conflitado será considerado como nulo e deixará de ser computado para a aprovação da respectiva deliberação. Nesse sentido, caso o voto do acionista conflitado tenha sido decisivo para a formação do quórum necessário para aprovação da matéria, então referida deliberação será anulável e buscar-se-á a recomposição do “status quo ante”, quando possível.
Com relação ao posicionamento da CVM sobre o assunto, destacamos que a autarquia já se posicionou em ambos os espectros da discussão. No caso do Inquérito Administrativo CVM nº TA/RJ2001/497710, julgado em 2001, a CVM se posicionou no sentido de adoção do conflito formal de interesses, ao impedir o voto da Tele Celular Sul Participações S.A., controladora da CTMR Celular S/A em uma deliberação assemblear da CTMR acerca da celebração de um contrato de licenciamento de marca entre a CTMR e sua controladora indireta, a Telecom Italia Mobile, por ocupar posições contratuais opostas, ainda que de forma indireta, como controladora da CTMR, e, de outro, como controlada da TIM.
Em seguida, no Inquérito Administrativo julgado em 2002, referente ao caso da Previ e Sistel, na qualidade de acionistas da Tele Norte Leste Participações S/A (TNPL), sobre a celebração de um contrato entre a Telemar (controladora da TNLP) e concessionárias controladas pela TNLP, a CVM, em sentido contrário ao inquérito anterior, absolveu os acionistas da TNLP com base no entendimento de que o conflito de interesses deve ser material e que, portanto, somente pode ser verificado depois de proferido o voto do acionista, considerando que o princípio da presunção de boa-fé e de o voto ser o principal direito do acionista de uma sociedade por ações.
Por sua vez, no caso Tractebel Energia S.A., julgado em 2010, a CVM se posicionou pelo impedimento de voto da GDF Suez Energy Latin America Participações Ltda., controladora da Tractebel, em assembleia que deliberaria sobre a compra da totalidade das ações da Suez Energia Renovável S.A., as quais eram detidas pela própria GDF Suez. Este caso paradigmático sedimentou o entendimento da CVM pela teoria formal do conflito de interesses, de modo que a autarquia passou a sistematicamente se posicionar pela proibição de votos nos casos em que exista conflito de interesses aparente, previamente à efetiva concretização do conflito.
Dentre os casos mais recentes envolvendo o potencial conflito de interesses, podemos citar o caso de combinação de negócios referentes ao Caso Linx S.A., o qual teve um grande destaque no mercado brasileiro, trazendo à tona novamente o tema do conflito de interesses e seus contornos jurídicos.
Porém no último ano, o colégio da CVM posicionou-se majoritariamente no entendimento de que se deve priorizar a teoria do conflito material de interesses, vale dizer, o acionista não pode ser impedido de votar quando houver uma mera presunção de que tenha um interesse conflitante com a companhia. Todavia, isso não impede que, futuramente, eventual deliberação tomada com o voto desse acionista seja anulada caso reste comprovado que ele votou privilegiando seus próprios interesses.
É uma mudança de entendimento relevante, tendo em vista que anteriormente, a maior aplicabilidade se dava por conflito de interesse formal, e não o oposto. Esse novo entendimento pelo conflito material pode ser verificado no PAS CVM SEI 19957.003175/2020-50, de 16 de agosto de 2022, definido exatamente no parágrafo 92: “Com relação ao benefício particular e conflito de interesses, o art. 115, §1°, da Lei n°6.404/1976, deve ser interpretado de acordo com a tese do conflito material”.
Adotando-se essa tese, o acionista que se presume ter interesses conflitantes com a companhia não pode ser impedido de votar numa assembleia. Posteriormente, se ficar comprovado que ele agiu dessa forma, poder-se-á buscar a anulação da deliberação.
À luz do acima exposto, em que pese o novo posicionamento da CVM, nos parece que a teoria do conflito de interesses formal é a que melhor se adequa à legislação societária brasileira, tendo em vista a dificuldade concreta de recomposição do “status quo ante” das sociedades por ações em caso de materialização de danos resultantes de conflitos de interesses, bem como à ausência de uma legislação que privilegie uma indenização eficiente e célere de acionistas em caso de perdas oriundas do voto por acionistas em conflito de interesses.
Autores:
Fernando Castellani
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Guilherme Lomonico
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Mayara Tornisiello
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