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8 de março de 2024

Alteração judicial de índice de reajuste contratual – Teoria da Imprevisão

por CCHDC

Até o advento da Pandemia do Covid-19, o IGP-M/FGV (Índice Geral de Preços do Mercado – Fundação Getúlio Vargas) era o índice mais comumente utilizado nos contratos de locação para reajustes dos aluguéis. Por questões de composição do índice, no ano de 2020, ou seja, no auge da Pandemia do Covid-19, o percentual acumulado anualmente, mês a mês, passou a ter valores referenciais muito mais elevados que os demais índices disponíveis no mercado (IPCA/IBGE, INPC/IBGE IPC/FIPE etc.). Em determinado mês, enquanto o IGP-M acumulava percentual anual de 37%, o índice utilizado pelo Governo como inflação oficial do país, qual seja, o IPCA/IBGE – Índice de Preços ao Consumidor Amplo, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, teve alta de 8,05% (oito inteiros e 5 centésimos por cento).

Com isso, muitos locatários, especialmente aqueles de imóveis não residenciais, utilizando-se da chamada Teoria da Imprevisão, propuseram ações revisionais de aluguel pleiteando judicialmente a substituição do IGP-M por outro índice inflacionário, especialmente o IPCA.

Tamanha foi a disparidade entre os índices que, à época, chegou-se a propor Projeto de Lei em que seria obrigatório a utilização do IPCA como índice de reajuste de aluguéis.

Também, o assunto foi motivo de divergência na jurisprudência, existindo decisões diferentes sobre o tema em todas as instâncias e tribunais. Porém, com o fim da Pandemia do Covid-19, bem como com drástica redução do percentual acumulado anualmente pelo IGP-M/FGV, nota-se que a tendência jurisprudencial foi de pacificação do tema.

Curiosamente, atualmente vivenciamos situação totalmente diversa, pois entre fevereiro de 2023 e fevereiro de 2024, enquanto o IGP-M acumula deflação anual de -3,31%, o IPCA acumula alta de 4,51%. A diferença é de 9 pontos percentuais! Entretanto, não se tem notícias de proposituras de novas ações buscando, ainda que temporariamente, a substituição do índice de correção do aluguel.

Da teoria da imprevisão

Também conhecida por sua expressão latina “rebus sic stantibus”, a teoria da imprevisão é um princípio de direito que sustenta que um contrato pode ser resolvido, ou ter suas disposições modificadas para reequilibrar as obrigações nele contidas se as circunstâncias das quais dependem variarem de certa forma, sendo que isso não poderia ter sido previsto no momento da assinatura do contrato, tornando seu cumprimento excessivamente oneroso.

Assim, a teoria da imprevisão pode ser definida como aquilo que permite a revisão do pactuado pelos contratantes para resolvê-lo ou modificá-lo quando, devido a circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis e fora do controle das partes, notoriamente se alterem as condições de sua execução, tornando o cumprimento da obrigação mais oneroso devido ao desequilíbrio entre as contraprestações.

Pode-se afirmar que são requisitos para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, pela aplicação da teoria da imprevisão, que o fato seja:

  1. imprevisível quanto à sua ocorrência ou quanto às suas consequências;
  2. estranho à vontade das partes;
  3. inevitável;
  4. causa de desequilíbrio muito grande no contrato.

Dessa forma, a teoria da imprevisão justifica a revisão de um contrato caso ocorra um acontecimento superveniente e imprevisível que desequilibre a sua base econômica, impondo a uma das partes obrigação excessivamente onerosa. Referida teoria mitiga o princípio da força obrigatória dos contratos (“pacta sunt servanda”).

A regra geral da contratação é a obrigatoriedade no cumprimento das prestações pactuadas (“pacta sunt servanda”). Algumas exceções se apresentam, como é o caso da ocorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis, aplicando-se a teoria da imprevisão.

É de se destacar que, no atual estado do direito, a lei – apesar de limitar e legitimar a autonomia privada – deve proteger os interesses sociais, aquilatando a confiança no contrato, em respeito à boa-fé objetiva. Temos, dessa forma, a perda do espaço da vontade em detrimento do interesse social. Dessa maneira, a teoria da imprevisão é uma via jurídica que pode ser utilizada tanto por credor quanto por devedor, e que se destina a sanar percalços que alterem a base negocial do contrato. Há de se perceber que credor e devedor não podem estar em mora. A causa superveniente deve ser fato extraordinário que mude a base negocial do contrato, ocasionando a uma das partes, ou mesmo a ambas, grave dificuldade para cumprir o contrato. O cumprimento dessa contratação, sem os ajustes que se proporcionariam, faria surgir séria lesão à contraparte.

Nesse contexto, a alta exagerada do IGP-M ocorrida entre 2020 e 2021 ante os mais diversos índices inflacionários, causou, especialmente na época mais grave da pandemia do Covid-19, onerosidade excessiva e desequilíbrio contratual, justificando-se, assim, o pleito de substituição do índice de correção do contrato de locação.

Das decisões judiciais

Até o ano de 2020, nunca foi discutido com tanta frequência no Poder Judiciário acerca da necessidade de alteração do índice de correção dos contratos de locação e, quando havia algum pleito de substituição de índice, este era negado.

Entretanto, como é de conhecimento público, o IGP-M teve alta acentuada, especialmente entre os anos de 2020 e 2021, tendo arrefecido tal tendência no ano de 2022, culminando na atual deflação.

Ante tal situação, bem como as restrições impostas à época da Pandemia do Covid-19, milhares de ações judiciais foram propostas pretendendo revisar os contratos, especialmente quanto a substituição do índice, principalmente pelo IPCA/IBGE.

Nesse período, tivemos certa insegurança jurídica sobre o tema, com decisões as mais variadas possíveis.

Em resumo, o que encontramos na jurisprudência, mais especificamente no Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, são três posicionamentos sobre a questão: (a) aqueles que admitem a possibilidade de “intervenção” do Poder Judiciário nas relações privadas para substituição de índice inflacionário escolhido livremente entre as partes em contrato de locação, na hipótese desse índice estar muito divergente dos demais índices existentes no mercado; (b) aqueles que não admitem tal possibilidade; e (c) aqueles que admitem a intervenção do Poder Judiciário, porém, de forma temporária.

Como acima explanado, especialmente no período mais “intenso” da pandemia, ou seja, entre março de 2020 e julho de 2022, em que o IGP-M/FGV acumulado anualmente foi muito superior aos demais índices, as decisões judiciais tanto em primeira instância, quanto em segunda instância, foram favoráveis à substituição do IGP-M/FGV pelo IPCA como índice de correção de contratos, especialmente os de locação.

Entretanto, tal entendimento foi se alterando ao longo do tempo, para que a alteração se desse provisoriamente, tão somente no período em que o IGP-M se mostrou mais elevado. Ou seja, a substituição definitiva do índice, passou a ser apenas provisória, por determinado período. Citamos alguns exemplos:

Contrato de financiamento imobiliário. Pedido de revisão contratual com: a) substituição do índice IGPM pelo IPCA; b) substituição da taxa de juros contratual, ante sua abusividade, pela taxa média do Bacen; c) declaração de nulidade da taxa de administração. Sentença de improcedência dos pedidos. Substituição do índice IGPM pelo IPCA impositiva, ante a teoria da imprevisão. Inteligência do art. 317 do Código Civil e ART. 6º, V, parte final, do CDC. Abusividade dos juros remuneratórios não configurada (REsp 1061530/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/10/2008, DJe 10/03/2009). Ausência de ilegalidade da tarifa de administração do contrato (REsp 1251331/RS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 28/08/2013, DJe 24/10/2013). Recurso provido em parte. (grifamos)

(TJSP. Acórdão. Processo nº 1018699-08.2021.8.26.0577. Órgão Julgador: 2ª Turma – Cível. Relator (a): Brenno Gimenes Cesca. Data do julgamento: 19/05/2022.)

Ação revisional de alimentos. Tutela de urgência – Indeferimento. Inconformismo por parte do autor. Parcial acolhimento. Abstraindo-se as circunstâncias fáticas que realmente demandam contraditório e dilação probatória, é incontroverso que no presente ano os alimentos pagos pelo agravante sofreram reajuste bastante elevado, pois o IGPM atingiu 32,02% no mês de maio. Em sede de cognição sumária, acolhe-se parcialmente a pretensão do agravante, tão somente para afastar a incidência do IGPM como índice de reajuste, adotando-se, em seu lugar, o INPC. Agravo de instrumento parcialmente provido. (grifamos)

(TJSP. Acórdão. Processo nº 2116731-16.2021.8.26.0000.  Relator (a): Piva Rodrigues. Data do julgamento: 29/06/2021.)

LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. MEDIDA LIMINAR. PLEITO VOLTADO A SUSPENDER O REAJUSTE DO LOCATIVO. ACOLHIMENTO PARCIAL PARA DETERMINAR A SUBSTITUIÇÃO PROVISÓRIA DO ÍNDICE DE REAJUSTE (IGPM) PELO IPCA. RECURSO PROVIDO, EM PARTE. 1. Houve o reconhecimento do estado de calamidade pública e é notório que a adoção de medidas restritivas de emergência, voltadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19, em especial o isolamento social, geraram efeitos no mercado atual. 2. Em razão disso, mostra-se perfeitamente razoável a substituição provisória do índice de reajuste (IGPM) pelo IPCA, mais condizente com a realidade econômica, considerando que nas circunstâncias atuais, o critério de reajuste contratado pelas partes se tornou injusto e implica desequilíbrio entre os contratantes. (grifamos)

(TJSP. Acórdão. Processo nº 2179200-98.2021.8.26.0000.  Relator (a): Antonio Rigolin. Data do julgamento: 18/10/2021.)

APELAÇÃO. REVISÃO CONTRATUAL. LOCAÇÃO COMERCIAL. Pedido de redução do locativo durante a Pandemia da Covid 19. Pretensão autoral de substituição do índice de reajuste do locativo e de redução do valor dos alugueres. TEORIA DA IMPREVISÃO. Conquanto a correção monetária não revele abusividade, já que visa apenas manter o poder aquisitivo da moeda, é cediço que o IGP-M apresentou elevação inesperada e desproporcional a partir de 2020. Alteração da base objetiva do contrato. Aumento que supera, em muito, a evolução dos índices inflacionários. O fator de correção monetária acarretaria extrema vantagem econômica para o locador, em um cenário em que as dificuldades econômicas de inúmeras classes sociais e categorias de trabalhadores vêm se agravando significativamente. Inteligência do art. 317 do Código Civil. Tendo em vista a recuperação econômica gradual com o arrefecimento da pandemia, justifica-se a substituição do índice contratado, provisoriamente, pelo IPCA, somente até final do ano de 2021 (exercício que o pleito foi formulado), retomando-se o IGP-M no próximo exercício. DESCONTOS DE 30% NO LOCATIVO. Impossibilidade. Inviável a cumulação deste benefício com a redução de 30% dos locativos, uma vez que representaria ônus excessivo à locadora. Sentença reformada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (grifamos)

(TJSP. Acórdão. Processo nº 1016414-18.2021.8.26.0100.  Relator(a): Rosangela Telles. Data do julgamento: 08/11/2022.)

Note-se que o principal argumento de fundamentação para deferimento de substituição do índice, ainda que temporariamente, é a imprevisão, pois o contrato fora firmado em período de normalidade e, com a Pandemia da Covid-19, houve exagerado aumento do IGP-M/FGV.

Tal fato era imprevisível aos contratantes no momento da celebração do contrato, e acabou por gerar desequilíbrio substancial entre as partes, tornando o contrato excessivamente oneroso a uma das partes, ou seja, clássica situação para aplicação da teoria da imprevisão.

Destaque-se também que, inicialmente, as decisões favoráveis à substituição do índice de correção tinham caráter definitivo, ou seja, substituíam o índice a partir do pleito judicial e até o fim do prazo de vigência contratual.

Como pode-se notar das decisões acima colacionadas, temos que, com a diminuição do percentual acumulado anualmente pelo IGP-M/FGV, especialmente a partir do segundo semestre de 2022, as decisões passaram a ser no sentido de substituição temporária do índice de correção, ou seja, somente nos reajustes anuais ocorridos entre março de 2020 e julho de 2022, mantendo-se o índice originalmente escolhido pelas partes no período sucessivo.

A questão que se põe, ante os princípios da intervenção mínima, da autonomia da vontade e do “pacta sunt servanda”, é se pode o Poder Judiciário intervir numa relação entre particulares apenas porque o índice de correção teve alta acentuada perante todos os demais índices do mercado.

Pode-se constatar que antes da Pandemia do Covid-19 e, após seu abrandamento a partir do segundo semestre de 2022, o Poder Judiciário, em especial o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, tem o entendimento pela não intervenção, ou seja, deve-se valer o que foi ajustado entre as partes, não sendo possível a substituição do índice.

Entretanto, conclui-se que, a depender do caso concreto e das circunstâncias a ele inerentes, é admissível invocar a teoria da imprevisão, em prevalência ao “pacta sunt servanda”, para buscar junto ao Poder Judiciário mitigar situação extraordinária e imprevisível, que onera demasiadamente uma das partes, pleiteando-se a substituição, ainda que temporária, de índice inflacionário livremente pactuado entre as partes.

Autores:

Antonio Tomasillo
[email protected]

Thamyres Risso
[email protected]

Mauricio Dellova de Campos
[email protected]

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